O corpo fragmentado da mulher

Sinto o meu corpo fragmentado. Aquela perna não faz parte deste ventre. A perna é minha, o ventre não.
O meu corpo feminino, exposto nu na praça pública, tantas vezes foi violado, tantas vezes foi condenado, tantas vezes castigado, julgado, denunciado, acusado, lapidado, queimado, esfaqueado.
As várias partes do meu corpo são peças, que não fazem parte do mesmo puzzle, não fazem parte do mesmo filme.
Os meus lábios desejam expressar-se, o meu peito deseja sentir a Alegria de viver, a minha barriga deseja rir.
Ponho a mão na perna, na barriga, no púbis (no pêlo púbico, pudico, publico...como é que se diz?)
Acaricio o peito, o ombro, o pescoço.
Sim sou eu. Sou tudo eu.
Quem sou eu? Qual é o meu corpo feminino, belo e forte, rijo e suave?
O meu corpo re-integra-se. Aquela perna já faz parte deste ventre.
Os fragmentos re-aproximam-se, re-encontram-se, re-unem-se,
Como por magia. Estou íntegra, una, inocente!
Agora sim, sinto uma aragem à flor da pele
ANABELA CUDELLIn Ag.Lunar 2005
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A fragmentação da mulher é uma realidade vivida à flor da pele, como tão bem ilustra este poema... Porém, nem sempre ou raramente a mulher é consciente dessa fragmentação, e portanto não percebe que o seu mal, divisão interna, insegurança, neuroses e a maior parte das suas doenças são em geral conseqüência dessa cisão da sua natureza profunda.
A mulher é geralmente acusada de histeria quando não consegue controlar a sua insatisfação ou incompreensão do seu ser, e se sente em conflito íntimo com o que o seu coração lhe dita e as convenções sociais que a razão masculina lhe impõe, desde cedo em casa e na escola e mais tarde na Universidade. Quando não aprende a ser submissa às leis do patriarcado que a anula na sua expressão profunda, indómita e selvagem, ela é votada ao ostracismo social ou aceita silenciar o seu íntimo regendo-se pelas regras e princípios dos homens actuando como a sociedade regida por eles lhe impõe.
Todas as mulheres, de uma maneira ou de outra, ao longo da sua vida, sentiram essa fragmentação do seu corpo e, o pior ainda, a fragmentação da sua alma pois, ao não poderem expressar a parte mais íntima e secreta do seu ser - que faria a fusão das partes divididas - e que é a sua consciência inata, a Voz do Útero, o seu centro de força e de integração, perde o direito ao seu ventre tomado como coisa do estado e propriedade da sociedade patriarcal.

A mulher viu-se assim ao longo dos séculos, aprisionada e impedida de ter voz própria, perdendo o acesso à Sua Voz que é Verbo, voz que vibra em ressonância com a Lua que a rege assim como os mistérios do sangue, da vida e da morte, e a rituais antigos ela dava corpo e alma ligando-se ao espírito Uno. A mulher como mediadora das forças cósmico-telúricas foi expropriada da sua identidade profunda, ao longo dos séculos de domínio patriarcal e explorada como “mãe” e “amante” separada em duas funções opostas ou mesmo antagónicas, perdendo assim o sentido da unidade do seu ser, acabando por aceitar ser dividida em duas, como digo tantas vezes, entre a santa e a puta, impedida da expressão livre e sagrada da sua sexualidade e erotismo, condenada pela Igreja e pelos padres, senão esposa-mãe, à castidade ou à clausura.

A Igreja, que se impôs pela destruição dos Cultos mais antigos cujos rituais de consagração das Forças da Natureza e as suas Estações, mantinham o equilíbrio da Terra no respeito da mulher e na adoração da Deusa Mãe, desfere um golpe fatal na mulher nessa cisão que lhe impõe através da imagem pecadora de Maria Madalena, primeiro, e, mais tarde, no seu dogma da Virgem como “imaculada concepção”.
Logo no seus primórdios, excluiu a mulher dos ritos da missa, usurpados por padres, e condenando a mulher ao silêncio e à culpa. Mais recentemente, perseguiu e queimou as curadoras e parteiras como bruxas, forçando a mulher a ser apenas a Mãe submissa ou a prostituta, que são ainda hoje os dois modelos impostos pela Igreja de Roma à mulher.
Desta forma, a mulher moderna que se julga liberta é, na verdade, uma mulher fragmentada ou uma mulher “masculinizada”, aquela que se julga emancipada, e não uma mulher integral que se assume de corpo e alma, e cuja sensibilidade particular a faz dotada de um poder único de Visão, cura e profecia. Por isso, os homens ainda hoje temem as mulheres e continuam a desacreditá-las quando manifestamente estas se expressam de forma menos racional ou mística. A idéia da bruxa, da vidente, ou mesmo da astróloga, é sempre ridicularizada face ao conhecimento intelectual racional académico. Até as mulheres que eles controlam e se julgam livres reagem aos aspectos místicos e transcendentais da sua natureza profunda e se desacreditam umas às outras.
Neste quadro, nem mulheres nem homens consideram real o aspecto ontológico da natureza feminina, expressão do Princípio Feminino, relegando para o plano do mítico, do absurdo ou da fantasia, ou mesmo do ridículo. Elas servem exclusivamente o Princípio masculino, veiculando uma escrita e uma imagem de si mesmas de acordo com padrões de preferência machista em detrimento delas próprias.
Cabe à mulher, antes do mais, acordar para a sua dimensão sagrada e unir as duas mulheres cindidas pela Igreja de Roma. Cabe à mulher acordar a Deusa dentro de si e revelá-la ao mundo. Essa poderá ser porventura a experiência mais profunda e gratificante que jamais terá na vida outra igual ou superior.
Cabe ao homem igualmente acordar para o seu lado Feminino e ajudar a mulher a caminhar para uma nova Ordem Planetária, de verdadeira paridade entre os sexos, e de amor sem posse ou exclusividade. Só unindo os dois princípios, feminino e masculino, o ser humano poderá salvar o Planeta da destruição iminente em que se encontra!

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